Modelos e Crescimento das Igrejas Batistas
Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho, preparada para o
Congresso da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, Secção Pará – Palestra 3
INTRODUÇÃO
Associar crescimento das igrejas com um modelo
eclesiológico me parece surrealista. Só é entendível que isto suceda porque
vivemos numa sociedade que valoriza a tecnologia, tem forte viés iluminista, e
vê a igreja como uma organização secular, sujeita às mesmas circunstâncias das
organizações seculares. É um reducionismo simplista que vem desde Giovanni
Vico, e que foi reforçado pelo Iluminismo. E encampado pelo marxismo. Disse
Vico: “A natureza das coisas não é mais do que virem elas a ser em determinados
momentos e de determinadas maneiras. Onde quer que as mesmas circunstâncias
estejam presentes, surgirão os mesmos fenômenos e não quaisquer outros (…)
refiro-me a esta verdade incontestável: o mundo social é certamente obra do
homem; e daí se segue que se podem e devem encontrar os princípios deste
mundo nas modificações da própria inteligência humana”[1]. A
igreja tem sido vista como obra do homem e ficou sujeita a leis programadoras,
num mecanicismo histórico, típico do marxismo. Achamos que podemos programar o
crescimento das igrejas, e que isto acontecerá se reproduzirmos circunstâncias
e situações. Se aplicarmos as técnicas certas, os resultados surgirão,
independente do lugar ou das pessoas. Podemos fazer as coisas acontecerem.
Basta sabermos fazer. Tendo acontecido, basta repetir em outros lugares. Isto é
um reducionismo, que empobrece o evangelho e diminui Deus. Nesta visão
secularizante, basta aplicar determinadas técnicas para que um organismo social
cresça. Como a igreja é vista como um organismo social deve haver técnicas
certas para seu crescimento.
Há vários modelos eclesiológicos prometendo o
crescimento da igreja. Assim vemos ministério colegiado, ministérios leigos,
células, igrejas nos lares, igreja emergente, igrejas amigáveis, G12 (sobre o
qual a Convenção Batista Brasileira se pronunciou) e outros mais. Estes modelos
diferem em forma e outros, em conteúdo. Mas alguns de seus defensores, não
todos, fazem com que tenham algo em comum: defendem-nos com ardor, como se fossem
um oráculo de Yahweh, a última esperança da terra. Alguns são bem enfáticos,
como um que me disse, textualmente: “Fora do modelo de igreja em células não
vejo futuro para a igreja!”. Devo dizer que esta foi uma opinião de uma pessoa,
e não do conteúdo do movimento celular em si mesmo.
Honestamente, nunca me preocupei com esta questão,
em termos de optar por um deles. Examinei, li, conversei com alguns de seus
usuários, e continuei tradicional, “fossilizado”, como alguns dizem. Sem
vaidade, não sou um fracassado. Todas as igrejas que pastoreei cresceram e
organizaram outras. Não creio que a questão de crescimento de igreja tenha que
ser atrelado a modelos eclesiológicos. Não vejo nenhum modelo como redentor da
igreja. Nem o que uso. Tendo posto as cartas na mesa, sigamos em frente.
1. ALGUNS RECEIOS
Quero manifestar alguns receios que nutro nesta
questão de modelos.
(1) Meu primeiro e mais forte receio é que o fazer
humano seja posto acima do poder de Deus. A crença na eficácia da estrutura
eclesiástica se torna maior que a crença no poder de Deus. Abordei isto no
discurso paraninfal apresentado à Faculdade Batista de Teologia do Amazonas, em
1997: “Quando a igreja troca a teologia pela tecnocracia” [2]. Nele mencionei
os pontos de discordância entre uma igreja e uma empresa, e como os critérios
de crescimento de uma nada têm a ver com o de outra. A descaracterização da
igreja é algo muito sério, e que temos que repudiar. Corremos
este risco porque os batistas somos muito institucionalizados. Temos uma crença
ingênua no poder das nossas instituições. Quase que as sacralizamos. Cremos que
todos os nossos problemas se resolvem com mais um Grupo de Trabalho, uma
comissão ou mais uma organização. E com isto tomamos as rédeas do processo
espiritual em nossas mãos. Perdoem-me por citar a mim mesmo, mas repeti estas
preocupações no artigo “Pastor ou gerente? Igreja ou empresa?”[3], onde
cito principalmente Os Guiness, em seu livro Dining with the Devil: the
megachurch movement flirts with the modernity. Este respeitado pensador
cristão mostra como a igreja, embora reaja contra a filosofia do secularismo, é
seduzida pelo processo de secularização. Ela aceita a maneira de pensar do
mundo. Ela não cumpre Romanos 12.2 e é moldada pelo mundo, perdendo sua
essência.
(2) Meu segundo receio é o modismo. Certas práticas
se tornam, entre nós, um autêntico shiboleth, aquela “pegadinha”dos
gileaditas contra os efraimitas (Jz 12.5-6). É o único modo certo de fazer as
coisas. Tem que fazer assim para não ser um ultrapassado. Não vai ser morto
como os efraimitas, mas espiritual ou intelectualmente, está morto. O copismo é
muito forte em nosso meio. Desde os cânticos ingênuos repetidos em várias
igrejas até estilos de pregadores que passam a ser imitados. Acontece, às
vezes, de a igreja não ter uma cultura adequada para aceitar determinada
eclesiologia (cada igreja desenvolve um jeitão, uma maneira de ser, com o
tempo) e o obreiro não tem o perfil para tocar aquele processo, mas tem que
fazer daquele jeito. Nem a igreja nem o obreiro têm condições de vivenciar
aquele modelo. Particularmente, sou descentralizador e distribuo tarefas. Teria
dificuldades com estruturas que colocam todo o poder na mão do pastor.
Não saberia como agir, e me perderia na administração deste modelo.
Aliás, en pasant, o pastor deve examinar bem a congregação que o
convida para o pastorado para ver se ele e ela têm algo em comum, se seus
estilos se harmonizam.
(3) Meu terceiro receio é o exclusivismo. Citei
anteriormente a frase de um adepto do modelo de igrejas em células, para o qual
a única salvação para a igreja estava neste modelo. Ele simplesmente aniquilou
o Espírito Santo e apagou toda a história da igreja. Teve uma crise de “Nunca
antes na história deste país” e zerou o cristianismo. É bom ser apaixonado pelo
que se faz, desde que se façam coisas corretas, mas é preciso cautela para não
elevar seu gosto, seu trabalho e sua opção ao nível de absoluto. Há gente
que exagera sua atividade e sua importância. Cautela e caldo de galinha nunca
fizeram mal a ninguém (a não ser à galinha, mas isto é outra história). Que
quem opte por um modelo não faça dele o modelo exclusivo. Há pessoas que acham
que sem elas Deus estaria perdido, sem saber o que fazer. Deus é soberano, e
age independente do que pensamos. Com todo respeito a Augusto Cury, apesar de
seu livro Você é insubstituível, os cemitérios estão cheios de
insubstituíveis. E o cemitério da história está cheio de instituições,
organizações e modelos insubstituíveis.
2. QUAL O MODELO DO NOVO TESTAMENTO?
A resposta é curta: nenhum. O Novo Testamento nos
fornece material para uma teologia da igreja, mas não para um padrão que seja o
modelo funcional de igreja. Frank Viola declara, em um de seus livros: “… o
Novo Testamento não contém tal projeto a ser reproduzido, tampouco uma lista de
normas e prescrições para os cristãos seguirem”[4].
Correto, muito correto. Mas, a seguir, ele apresenta o seu, de igrejas nas
casas, e num passe de mágica o mostra como sendo o único correto. Cáustico com
os demais modelos e cantando loas ao seu modelo, ele vai desconstruindo tudo,
desde as denominações ao modelo em células. Muito de seu arrazoado é correto,
mas numa argumentação primária e canhestra, ele transforma algo historicamente
eventual em absoluto teológico. Estabelecer uma eclesiologia padrão nas igrejas
que foram focadas nas cartas paulinas é um pouco temerário. Eram
circunstâncias em mutação. A teologia foi definida, mas o modus operandi
das igrejas, em termos estruturais, não me parece ter sido definido no Novo
Testamento.
As idéias deste movimento de igrejas nos lares
foram mais disseminadas num romance Por que você não quer mais ir à igreja, de
Jacobsen e Coleman, bem escrito, embora raiando o absurdo com um apóstolo João
redivivo, andando em nosso meio. Mesmo no romance dá para ver que o conceito se
igreja se esvazia teologicamente. Ela perde sua universalidade, deixa de
cultivar a comunhão dos santos (é cheia de empáfia espiritual, pelo menos nos
escritos de Viola) e perde também a visão missionária. Sua visão social é uma
esquisita forma de koinonia, que pode ser chamada de koinonite:
“Você traz cafezinho e eu trago bolachinhas”. Soa-me como guetização do
conceito de igreja. Se gasto tempo com Viola e seguidores é exatamente por
isto: por se apropriarem do conceito bíblico de igreja e amoldá-lo à sua visão
de grupinho de auto-serviço, em culto ao umbigo. Isto acaba com a igreja.
Tira-lhe a universalidade, a missão mundial de evangelização e a torna em grupo
de auto-ajuda. Cabe bem aqui a observação de Horton: “O teatro principal para o
serviço do povo é o mundo, e não os ministérios de serviço dentro
da igreja”[5].
A igreja primitiva não tinha templos. Mas tampouco
tinha qualquer estrutura eclesiológica. Era apenas um agrupamento de homens e
mulheres, ao redor de um fato: Cristo vivera, morrera, ressuscitara e deixara
um grupo que cria nele. Qualquer modelo que advogue para si o título de ser o
modelo neotestamentário terá que fazer piruetas exegéticas para justificar sua
posição e sua existência.
Viola é radicalmente contra instituições religiosas
e igrejas institucionais, mas usa uma Bíblia que foi editada por alguma
instituição religiosa, mantida por igrejas institucionais. Edita livros por
editoras religiosas, administradas por pessoas que pertencem a igrejas
institucionais. Se todo o cristianismo fosse nos moldes de Viola estaríamos
muito mal das pernas.
Modelos são embalagens. Não são absolutos nem o
mais importante. O mais valioso é o que a embalagem traz, e se esta se sobrepõe
ao produto, isto me beira à idolatria.
3. MAS HÁ MODELOS QUE DÃO CERTO!
Não há garantia que um modelo transplantado de uma
igreja para outra dê certo. Ainda é cedo para se afirmar que dê certo, e as
pesquisas até agora não são exaustivas para se afirmar que dê certo. Mas a
experiência de colegas que se frustraram com modelos que empacaram em sua
igreja mostra que nem sempre dá certo.
Os dados estão defasados, mas a mais exaustiva
pesquisa sobre crescimento de igrejas ainda pertence a um trabalho efetuado na
década dos sessentas, por Read, Monterroso e Johnson. Foram dez meses de
pesquisa em duas mil igrejas em dezessete países e vinte meses de análise dos
dados da pesquisa. O resultado gerou um livro O crescimento da igreja na
América latina [6]. Os dados estão defasados, porque
a pesquisa já tem meio século. Mas apontaram algo surpreendente: o crescimento
das igrejas não estava ligado à doutrina (havia igrejas tradicionais que
cresciam e igrejas pentecostais que não cresciam), nem à eclesiologia (não
fazia diferença se o governo era congregacional, episcopal ou presbiterial),
nem à liturgia (não fazia diferença se era solene ou solto). Estava ligado à
capacidade de mobilização dos chamados leigos, e do seu envolvimento com a
obra. Isto está de acordo com o chamado teorema de Strachan. O nome
deriva do missiólogo Keneth Strachan. Ele analisou o crescimento das
seitas na América latina, inclusive o comunismo, que ele chamou de seita com
religiosidade secular, e testemunhas de Jeová. Observando o porquê de seu
crescimento, declarou que “O crescimento de um grupo religioso está diretamente
ligado à capacidade deste grupo em mobilizar seus membros numa constante e
contínua propagação de suas crenças”. Esta expressão ficou conhecida como o teorema
de Strachan. O que faz o crescimento não é o modelo, mas são as pessoas.
Um reparo que se faria à pesquisa, hoje, é o
crescimento do neopentecostalismo com a figura sacerdotal do pastor e com uma
absoluta ausência de participação dos leigos, em regimes ultra-centralizados.
Mas mesmo assim, examinando-se a Universal do Reino de Deus, Internacional da
Graça, Renascer e semelhantes, observa-se que o elemento chamado leigo, se não
participa da divulgação da fé, participa de cultos descarregando suas emoções.
E pessoas são chamadas para darem testemunhos, que, via de rega, as colocam
como foco de atenção. As pessoas têm muita necessidade de chamar a atenção e de
serem notadas. Um culto em que podem se expressar e falar (mesmo que coisas
duvidosas como vemos em alguns testemunhos) as atrai. Elas são o foco de
atenção. Mas isto é outro caso, as patologias emocionais das pessoas.
A questão que levanto é esta: é o modelo, em si, ou
o fato de que o modelo envolve as pessoas? Se o envolvimento das pessoas
suceder em outro modelo, o crescimento não aparecerá? É o modelo mesmo ou o
padrão comum é o do envolvimento das pessoas com sua crença?
Lembro-me de uma afirmação que li em um livro de
Filosofia, e de cujo título me esqueci. Ficou-me a declaração: “As idéias movem
o mundo” [7]. Mais
tarde, ruminando a frase, discordei. As idéias não movem o mundo. O que move o
mundo são as pessoas. Que o evangelho seria levado aos gentios estava predito a
Abraão (Gn 12.3). Mas o Espírito Santo chamou dois homens, Barnabé e Saulo,
para esta obra (At 13.1-2). A doutrina da justificação pela fé sempre esteve
lá, na Bíblia. Mas Lutero a redescobriu. A ordem de missão mundial da igreja
sempre esteve lá, no Novo Testamento. Um dia, um homem, William Carey, a
abraçou com entusiasmo. São pessoas, motivadas, treinadas, envolvidas,
comprometidas, que fazem a diferença. Por isso, contradito o título deste
tópico. Há pessoas que fazem os modelos darem certo.
4. O MODELO NECESSÁRIO
O modelo necessário está no conceito de pastor e no
conceito de igreja. Precisamos de pastores que sejam pastores, e não
meros funcionários religiosos. E de igrejas que sejam igrejas, não meros
agrupamentos religiosos. Pastores e igrejas que preguem todo o conselho de Deus
e não que se preocupem em fidelizar clientes, para ter gente no culto. As
igrejas não precisam de clientes, mas de pessoas salvas e engajadas.
Precisamos de obreiros que amem o ministério, que o
levem a sério. Que digam como Paulo: “Contudo, nem por um momento considero a
vida como valioso tesouro para mim mesmo, contanto que possa completar a missão
e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do Evangelho da
graça de Deus” (At 20.24, King James).
Creio que um dos maiores problemas hoje está na
área pastoral. Andarei por aqui sobre o fio da navalha, com cuidado, e com
temor. Não jogaria pedras em colega algum, nem me poria como modelo, mas tenho
me chocado com a falta de zelo de alguns obreiros e com a falta de conteúdo de
algumas igrejas. Graças a Deus por homens e mulheres santos e comprometidos com
o ministério. Graças a Deus por igrejas que pregam o evangelho. Mas a imagem
que o mundo tem de pastores é de pessoas pouco íntegras e das igrejas
evangélicas como instituições pouco confiáveis. Este fator prova que não estou
sendo duro. Não temos boa imagem junto ao mundo.
Precisamos de pastores que formatem suas igrejas
espiritualmente. Que as levem à santificação, que não deve ser entendida como
gritaria, mas sim como abandono do pecado e crescimento na graça. Que as levem
a crescer em evangelismo e missões. Que sejam cooperadores com os colegas e com
o grupo. Que não se isolem e que façam parte do todo. E que entendam que o
crescimento é obra de Deus, e não de técnicas e de modelos. “Eu plantei; Apolo
regou; mas foi Deus quem deu o crescimento” (1Co 3.5, KJ).
O modelo ideal não é o que privilegia forma, mas o
que privilegia caráter. Tanto o espiritual quanto o moral. Tanto do obreiro
quanto o da igreja.
CONCLUSÃO
Uma última palavra: nossa missão, como pastores,
não é produzir o crescimento da igreja. Ele é conseqüência de nossa missão ser
cumprida. Em termos de nossa missão para com a igreja como um todo, as
palavras de Paulo são bem esclarecedoras: “Pois tenho verdadeiro ciúme de vós e
esse zelo vem de Deus, pois vos consagrei a um único esposo, que é Cristo, a
fim de vos apresentar a Ele como virgem pura” (1Co 11.2, KJ). Em termos de
nossa missão para com o crente, como indivíduo, cabem as palavras de
Colossenses 1.28: “A Ele, portanto, proclamamos, aconselhando e ensinando cada
pessoa, com toda a sabedoria, para que apresentemos todo homem perfeito em
Cristo”.
Ter ciúmes e zelo pela igreja. E cuidado pelas
ovelhas. Estas são nossas funções precípuas, entre muitas outras. Quando a
igreja em geral e o crente em particular amadurecem, a igreja cresce. O
crescimento é natural, não produzido em laboratórios eclesiásticos. Cuidemos de
nossas igrejas como um todo, e de nossas ovelhas, em particular. Deus dará o
crescimento através das vidas dos crentes, que se reproduzirão.