Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho
Palestra preparada para o Congresso Regional da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, em Brasília, sob o tema “Celebrando a Palavra e a pregação”, e apresentada em 18 de agosto de 2012
INTRODUÇÃO
É triste que se esteja a falar de resgate da biblicidade no púlpito. Mais triste ainda é que o tema não é irreal nem um superdimensionamento de uma situação. A Bíblia anda sumida de muitos púlpitos. Crentes queixaram-se comigo de que seu pastor levava livros de Alberto Cury para o púlpito e lia trechos das obras, ao invés de expor as Escrituras. E mesmo nos púlpitos para onde são levadas, não se pode afirmar com muita segurança que elas serão expostas.
Lecionei Homilética por mais trinta anos em nossos seminários, e até em nível de mestrado. Falei sobre o tema em vários congressos e encontros de pastores. A questão não amainou. Pelo contrário, recrudesceu. A Bíblia está em baixa em nossas igrejas. Nos anos sessentas, quando me converti, adolescente, a Bíblia era o nosso símbolo distintivo. Hoje, é a caixa de som, com que atazanamos a vida dos nossos vizinhos. O barulho está sendo usado para ocultar a falta de conteúdo.
Como professor, recebi e avaliei centenas de esboços. Li centenas de sermões para análise de sua estrutura e do seu conteúdo. Alguns foram muito bons e me encheram de satisfação. Mas uma grande parte era vazia de Bíblia e repleta de conceitos pessoais do pregador (muitos deles irrelevantes), de afirmações do senso comum como oráculo sagrado, e quase sempre eivada de eisegese (o ato de colocar ideias no texto) e pobre de exegese.
Isto tende a se agravar. A secularização da Teologia, em muitos segmentos substituída por Ciências da Religião, contribui decisivamente para isso. Esse processo secularizante se vê claramente na atitude do MEC que queria dos nossos seminários que buscam seu reconhecimento um curso de Teologia com “exclusão da transcendência” 1. Algo semelhante a estudar Medicina com “exclusão do humano”. Ainda bem que a ABIBET reagiu a essa pândega mequiana!
Muitas pregações soam mais a Lair Ribeiro que ao Espírito Santo, autor último das Escrituras (2Pe 1.21). E como a teologia (com “t” mesmo, pois aludo à teologia vivida na igreja) é subsidiada e fortalecida pelos cânticos (como com Lutero, que firmou a Reforma com seus hinos) e estes são muito pobres de exegese bíblica (mais ainda neotestamentária), as igrejas estão se acostumando ao nada. Algumas expressões são tão esotéricas que não permitem sequer saber em que crê a comunidade que as canta. Há excesso de expressões poéticas, conceitos experienciais, espiritualidade aguada e uma religiosidade abstrata cabível em qualquer lugar, mas há escassez de exegese.
1. É A CONTINUIDADE DE UM PROCESSO HISTÓRICO
Isto não é algo novo, surgido de repente. Arrasta-se há tempos na História. Vejo dois elementos causadores da situação. Um é o experiencialismo religioso que se tornou padrão aferidor da fé e do credo, desde o surgimento do pietismo de Jacó Spener. Declaro-me de teologia de fundo pietista, mas reconheço os riscos derivados do pensamento de Spener. Postas no mundo, as ideias não mais pertencem a quem as emitiu e sofrem desdobramentos que o emissor não tinha em mente. Embora Spener advogasse o estudo e a exposição de toda a Bíblia, sua ênfase no indivíduo sobre a comunidade e a internalização da fé e sua compreensão como experiência mais que como credo, acabou gerando uma série de conceitos como “Vida é melhor que doutrina”, “Religião é questão de coração e não de cabeça”, o que tirou o foco do cognitivo e o pôs sobre o sentir. Isto se vê de maneira muito forte em nosso meio. As pessoas não querem “doutrina” (Bíblia), mas querem “vida” (celebração).
A intimização da fé (aqui o termo significa credo, e não sentimento) é danosa por que tira sua objetividade. A Bíblia cede espaço aos sentimentos e intuições. Isto faz com que o foco de autoridade seja o homem e não Deus. Abre espaços para que “insights” humanos sejam vistos como “revelações” de Deus. As pessoas passam a se interessar mais por estas, revelações fresquinhas e aplicadas diretamente a elas, que pelo ensino da Bíblia, revelação antiga e ampla.
Dois elementos se uniram para produzir este momento que vivemos, de “revelações” e da hermenêutica do “Eu acho assim, ó…” ou “Eu penso assim, ó…”, ao invés de “A Bíblia diz”. O primeiro é a herança do racionalismo iluminista que produziu o deísmo, a fé em um Deus impessoal, o Relojoeiro que fez o relógio, deu-lhe corda e se ausentou. O pressuposto do racionalismo é que a Bíblia é irrelevante e a razão se sobrepõe a ela. O segundo é o experiencialismo pentecostal e neopentecostal, que tem suas raízes no pietismo. Neste, a Bíblia é incompleta sem o aval da experiência humana. O homem se sobrepõe à Palavra. São dois extremos que produzem resultados semelhantes: o solapamento da autoridade da Bíblia. O pressuposto é que Deus ainda se revela (isto é diferente de dizer que ele ainda fala). As revelações fresquinhas são preferíveis às revelações com cheiro de mofo.
O deísmo foi a tentativa de criar uma religião a partir da razão. Cinco proposições o caracterizam: (1) Existe um Deus; (2) Ele deve ser servido; (3) O serviço a ele sucede por meio da virtude e da piedade, e não do rito; (4) Devemos evitar o mal e fazer o bem; (5) Há uma recompensa aqui e na vida no além. A virtude, a piedade pessoal, o caráter, todas essas coisas mostram o que é a religião verdadeira. É ser bom e fazer o bem e esperar uma recompensa. Ela se centra no que o homem faz, não no que Deus fez. A ideia de graça deixou de existir. Um Salvador não se era mais necessário. A religião era fazer o bem aos outros e ser reto diante da Divindade. Com exceção de uma possível recompensa na eternidade (mais como produto de que deve haver uma moralidade racional no mundo que como recompensa ministrada por um Deus Pessoal), o discurso é secular. Deus passou a ser uma energia, uma fonte, um Ser, não o Deus Pessoal que interveio na história e entrou na experiência dos homens com o ministério vicário de Jesus. Este foi apenas o homem modelo para nós.
Deus deixou de ser uma pessoa e passou a ser uma força. A única pessoa é o Homem. Se Deus não é uma pessoa, não há uma revelação. O foco não é mais a Palavra de Deus nem mesmo Deus. É o Homem. Quando Feuerbach declarou que a Teologia nada mais é que Antropologia apenas resumiu a consequência do pressuposto basilar do deísmo. E deixou claro que a foco da pregação não é uma Revelação, mas o Saber Humano. Este processo retirou a autoridade da Revelação. “Quando os teólogos aplicaram os princípios deístas aos seus sermões, estes passaram a ser meros discursos morais: ‘A pessoa virtuosa levanta cedo; por isso as mulheres foram cedo ao sepulcro de Jesus na manhã da Páscoa. Levantemo-nos cedo, sejamos virtuosos’!” 2. Isto foi um sermão de Páscoa. Eis o título de outro sermão pascal: “O perigo de ser sepultado vivo”. E de um sermão de natal: “Os cuidados que se devem tomar com o recém-nascido”. Não vivenciamos situação nos mesmos termos, mas o molde é o mesmo: a Bíblia tem pouco a dizer ao público e é preciso atualizar o conteúdo da pregação. Ela nada tem a ver com a vida atual e a vida atual carece de orientação vinda de outra fonte. É manifestação de erudição e de desapego ao atraso cultural valer-se de fontes de orientação que não sejam as Escrituras. O uso da Bíblia ficou estigmatizado como algo ultrapassado. Até mesmo porque o Iluminismo, produtor do deísmo, via a igreja como um fenômeno da cultura, e não mais como produto de uma intervenção divina na história. A igreja se tornou evento secular.
Houve os avivamentos do século 18, mas eles tiveram a linha pietista, o que não anulou o efeito iluminista do deísmo. Eles deixaram muitas marcas positivas no movimento evangélico. Na realidade, cristalizaram-no. Não podemos negar seu valor. Mas quero ver outro aspecto. Enfatizaram muito a transformação da sociedade, com uma visão pragmática do reino de Deus. O segundo e o terceiro avivamentos tiveram forte foco milenarista, inclusive pós-milenarista, visando o controle do mundo. Com isso surgiram grandes reformas sociais, mas o domínio do mundo foi visto como algo necessário. “Nossa meta é o domínio do mundo sob o senhorio de Cristo, ‘o controle do mundo, se desejar (…) somos os formatadores da história do mundo” 3. O discurso social tornou-se muito forte e, pode parecer estranho, mas é verdade, muito do avivamento acabou se transformando num tipo de evangelho social, em que o saber humano foi, pouco a pouco, destronando a Bíblia. Nesta busca de poder secular, a igreja vem fazendo alianças, ao longo dos tempos, renegando princípios bíblicos que nunca deveria deixar de observar e tem se secularizado. Toda vez que a Bíblia deixa de ser normativa e balizadora, a igreja se seculariza. Consequentemente, todas as suas atividades, inclusive a pregação, se secularizam. E também sua vida. A tal ponto que a luta por poder em muitas denominações evangélicas é idêntica à luta pelo poder na vida secular, em termos éticos. A mesma baixaria.
Com estes antecedentes podemos entender um pouco das raízes que ficaram em nosso meio, sobre o valor das Escrituras como normativa. O Sola Scriptura da Reforma foi abalado. A igreja não era de origem divina, a Bíblia não era fonte de autoridade (o deísmo iluminista) e a igreja deixou de viver sob a autoridade das Escrituras ao colocar mais do seu foco neste mundo que nas realidades espirituais. O temor santo diante da Palavra cedeu lugar a uma visão utilitária e seletiva da Bíblia.
2. O QUE ISTO CAUSA?
Estes antecedentes trazem, pelo menos, quatro consequências à vida da igreja.
(1) O primeiro é a não relevância da Bíblia. O Iluminismo produziu muito do nacionalismo europeu, que procurou ajustar a igreja e a Bíblia ao bem do Estado. O bem comum da sociedade exigia a subordinação da Revelação à Razão. Como hoje: o que a Bíblia diz não é relevante. Ela pode condenar o homossexualismo, mas a Psicologia e afins dão-no como normal. A sociedade aceita o homossexualismo e até apena quem dele discorda. Não aceitá-lo é ser fundamentalista (termo que significa mais ou menos ser troglodita cultural ou comer criancinhas no café da manhã) aceitar a Bíblia e não a ciência. Muitos pregadores se sentem intimidados em afirmar as Escrituras e estão mais sintonizados com a Filosofia, Psicologia, e demais ciências seculares que com a Bíblia. Há pregadores mais à vontade com o saber secular que com o saber bíblico. Uma recente pesquisa deu que 50,68% dos pastores nunca leu a Bíblia toda 4. E li, mas não tenho mais a fonte, que cerca de 80% não a leem diariamente. Fogem-me os dados, mas guardei por causa do impacto que me causou. O púlpito não é profundo nas Escrituras.
(2) O charme do pensamento secular. Dá autoridade citar pensadores seculares, mesmo que ateus. Citando-os, o pregador se mostra atualizado e erudito. Numa sociedade em que a religião é privatizada (cada um tem a sua), o pastor fica em desvantagem, sustentando conceitos pouco relevantes ao mundo fora da igreja. Mas se ele conhece bem os pensadores mais sisudos e os que estão na berlinda, então é alguém bem preparado. Ele não se cinge a um livro ultrapassado. “É um cara erudito!”. É melhor ser um intelectual secular que um troglodita teológico. O lema de muito púlpito é Sola Cultura.
(3) Se a Bíblia é vista como um livro restrito a um templo e não à vida normal das pessoas, não há muito sentido em estudá-la. Lecionei Antigo Testamento por mais de trinta anos, e também em nível de mestrado. Surpreendi-me em ver a ignorância da maior parte dos alunos em saber que houve dois reinos no Antigo Testamento, que o termo “Israel” se aplica a três agrupamentos diferentes, na Bíblia: ao reino unido até Salomão e depois ao reino do Norte (no Antigo Testamento) e ao Judá retornado (nos pós-exílicos e no Novo Testamento). Isto se conecta estreitamente com o ponto (1). Falta estudo da Bíblia. Há preguiça e desinteresse em entendê-la.
(4) Uma cosmovisão inadequada. A cosmovisão de muitos pregadores não é bíblica. É secular. Muitos seminários a reforçam, como vemos em dissertações de mestrado e livros que circulam em seminários como sendo eruditos e atuais. Temas como “Uma visão afro do cristianismo”, “Uma visão feminista do evangelho”, “Uma análise terceiromundista da Bíblia” provam isso. São temas tão válidos como “Uma visão europeia do cristianismo”, “Uma visão machista da Bíblia” e “Uma visão primeiromundista da Bíblia”. Se a Bíblia deixa de ser o microscópio e se torna a matéria examinada pelo microscópio da cultura, qualquer análise cultural é válida! Descendo de europeus. Sou neto de portugueses e de suíços (e não pedirei desculpas por isso ao politicamente correto) e por isso não me interesso por análises africanas. Com todo respeito, não acho a África linda. Acho a Europa linda. Por que uma análise europeia é, culturamente, menos válida que análises latino-americana, africana ou asiática? Se a cosmovisão não é bíblica, o púlpito se seculariza. Ecoa a cultura secular, mas não ressoa a voz de Deus. Torna-se atual, mas irrelevante. Esta é uma das maiores tragédias que pode suceder a uma igreja: um púlpito irrelevante. A igreja se descaracterizará.
3. O VALOR E A NECESSIDADE DA BIBLICIDADE DO PÚLPITO
Serei breve aqui. O valor da biblicidade no púlpito é porque sem Bíblia não há pregação. Há discurso religioso, moralista, piegas, qualquer coisa, mas não pregação. A melhor definição de pregação que já vi está em Neemias 8.8: “Leramno livro,na Lei de Deus, claramente,dando explicações, de maneira que entendessem o que se lia”. Pregar é ler a Palavra de Deus, explicar e levar o povo a entender o que foi lido.
Sem a Bíblia não há pregação. Há tagarelice espiritual. O resultado de pregar a Bíblia se vê nos demais versículos. O povo sentiu o impacto, comoveu-se, chorou-se, alegrou-se, porque entendeu a Palavra de Deus. Quem queira um rebanho alimentado deve saber que pirotecnia no púlpito, tirando um coelho da cartola a cada culto, pode aumentar o auditório. Mas não alimentará o rebanho. E é até duvidoso que um grupo de pessoas que se reúne com motivações religiosas mas nutra uma religião sem a orientação das Escrituras seja mesmo uma igreja. Sem o referencial e o substrato das Escrituras soa-me duvidoso que o seja uma igreja. Uma igreja sempre terá fundamentos bíblicos.
4. COMO RESGATAR A BIBLICIDADE
“Resgatar” é o termo correto. Há “igrejas” em que as pessoas não usam a Bíblia nem precisam levá-las. Já vi cultos assim, mas me reservo o direito de não citar onde e qual denominação assim age, para não criar melindres. Como resgatar a biblicidade na pregação e no ensino da igreja?
(1) Tendo uma cosmovisão bíblica. Quero voltar ao termo. Cosmovisão bíblica significa ler o mundo pela Bíblia. Significa reconhecer sua autoridade para interpretar as atitudes dos homens e o rumo dos eventos. Ela é a base e o conteúdo da pregação, não ilustrações enlatadas, nem conceitos de classe média ou do contexto social em que a igreja e o pregador estão inseridos.
Uma cosmovisão bíblica é questão teológica, e não caturrice do pregador. É o reconhecimento de que existe uma fonte de verdade fora de nós (não apenas como pessoas, mas como cultura) e que essa fonte de verdade é, especificamente, a Palavra de Deus verbalizada e proposicional. Buscar referenciais na cultura secular é pregar prego na areia, porque a cultura secular é mudancista enquanto a Bíblia se propõe a ser a Palavra de um Deus que não muda nem se contradiz. Referenciais extrabíblicos são suicídio teológico.
(2) A crucificação do pregador. Saio do nível teológico e global, e entro no pragmático e pessoal. O pregador deve dizer como Micaías: “Vive o Senhor que o que o Senhor me disse, isso falarei” (2Cr 18.13). Há muita gabolice, “achismo” e conceitos pessoais emitidos como sendo Palavra de Deus. “O profeta que teve um sonho devia contá-lo como um simples sonho. Mas o profeta que ouviu a minha mensagem devia anunciá-la fielmente. Que vale a palha comparada com o trigo?” (Jr 23.28). Fale a Palavra de Deus. Suas esquisitices e sua visão pessoal do mundo são palha. A questão de crucificação do pregador é que seu ego deve morrer no púlpito. Quem deve brilhar no púlpito? O pregador ou a Palavra? Por que o pregador deve ser sempre como o herói da história? Por que seus conceitos pessoais devem ser levados a sério? O pregador sério que tem um púlpito sério é escravo da Palavra. Fala o que ela fala e cala onde ela cala. Não é o nosso falar, nosso discurso pessoal nem nossa estrutura de argumentação que são relevantes. Nossa relevância vem do fato de que somos homens que falam a Palavra Relevante de um Deus Relevante. O que tornou Billy Graham o grande evangelista e o pregador do século não foram seus recursos, mas seu “A Bíblia diz” repetido constantemente.
(3) Ter consciência da seriedade da missão. O Dr. Jerry Key comentou de um esboço de sermão em que o pregador anotou ao lado: “Nesta altura, dar um murro no púlpito por que o argumento é fraco”. Um pregador sério levará a sério estudará a Palavra com afinco, terá intimidade com ela, e a exporá com respeito. Pregar é mais que gritar e bater no púlpito. Em uma igreja em que pastoreei, preguei certa vez em Mateus 12.20: “O morrão que fumega”. Falei de como Jesus se compadece dos fracos, que fumegam, já sem luz, esgotados e acabados. Findo o culto, uma senhora me disse: “Se o que o senhor disse é verdade, me ajude. Eu tinha decidido me suicidar hoje, e vim à igreja por ato social, em amizade com uma amiga que é membro aqui. Seria meu último gesto social”. E se eu tivesse ido ao púlpito para dar o relatório da última assembleia convencional ou apenas para gastar o tempo? Se tivesse contado várias piadas para “quebrar o gelo”? Quando um pregador sobe ao púlpito deve ter em mente que cada pessoa do auditório colocou trinta minutos de sua vida nas mãos dele. E que esses minutos podem fazer uma diferença enorme. Quer material mais seguro para se usar neste tempo que a Palavra de Deus? Quer algo mais vivo e mais poderoso? Nossa missão é muito séria. Nós pregamos a Palavra de Deus e não nossas ideias. O púlpito é o instrumento para a proclamação da Palavra e não lugar para exibição e autoglorificação. Ao ir ao púlpito o pregador deve estar encharcado das Escrituras.
(4) Tendo insatisfação consigo mesmo. O bom pregador nunca está satisfeito com seus sermões. Sempre procurará melhorar a si e a eles. Quando reviso meus sermões procuro ver o quanto dos argumentos poderia ser melhorado, e quanto da Bíblia poderia ter ficado mais claro. Após a pregação repasso o filme na cabeça. A Bíblia ficou mais clara? Deixei o texto compreensível? As conexões foram exatas? Analiso se minha proposta de deixar o texto claro e compreensível ao auditório foi conseguida. Mas a análise é sempre por este ângulo: assimilaram mais da Bíblia?
Esta insatisfação do pregador deve ter outro ângulo: ele nunca conhece a Bíblia suficientemente. Nunca deixa de lê-la e de estudá-la. Choca-me saber de colegas que ironizam pastores que estudam e que, na ironia, chamam-nos de “pastores de gabinete”. Os pastores devem ser homens da Bíblia, devem estudá-la com afinco, devem ler bons livros que aumentem seu conhecimento sobre ela. O problema é que o ativismo é visto como sinal de importância. E a reflexão e o estudo da Palavra são vistos como irrelevância. Na igreja primitiva, os apóstolos deixaram questões menores para seus auxiliares e foram se dedicar à oração e à pregação (At 6.4). Fica-me a impressão de que hoje não há tempo para os pastores orarem nem estudarem para pregar. Eles acham que têm coisas mais importantes para fazer, inclusive supervisionar a colocação correta dos tijolos na construção. O pastor deve ser um homem da Bíblia, deve lê-la e estudá-la diariamente, e deve se sentir insatisfeito quando não consegue fazer isso. Se a Bíblia ocupar este lugar em suas emoções, será proeminente em seu púlpito.
(5) Vem só agora, mas não é o menos importante: amor pela Bíblia. O pregador deve ser um homem que diga o Salmo 119.97 com seriedade: “Como eu amo a tua lei! Penso nela o dia todo”. Homens que passam a semana toda sem lê-la e, no sábado, angustiado a folheiam em busca de sermão, não honram o púlpito porque não amam a matéria do púlpito. A visão utilitária das Escrituras é danosa. Relembrando saudosamente o castiço português do Pr. Éber Vasconcelos, que por tantos anos honrou o púlpito batista, ele que foi o “Príncipe do Púlpito”: “A visão há que ser sempre passional”. A leitura da Bíblia não pode ser profissional, mas passional. Feita com amor, com paixão. Só um homem apaixonado pela Bíblia deixará a Bíblia marcada na vida dos ouvintes. Alguém poderá ser apreciado pela boa oratória, outros pela gesticulação e outros mais pela imponência, mas para ser apreciado como um homem da Bíblia, só mesmo tendo amor por ela. O resgate da biblicidade em nossa pregação passa por aqui, pelo amor à Palavra. Este amor produzirá respeito e até mesmo temor. É chocante a falta de reverência para com a Palavra de Deus.
O pregador deve amar, respeitar e valorizar a Palavra de Deus. Isto é mais que usar a Bíblia. Usar todo mundo usa: testemunhas de Jeová, mórmons, adventistas, mas subordinam-na a outros livros. O pregador da Bíblia deve se envolver com a Bíblia. Deve ser o livro mais lido, mais amado e mais respeitado por ele. Não é onde ele vai buscar sermão. É onde ele busca alimento para si. Ai da igreja cujo pastor só lê a Bíblia em busca de sermão. Ela ouvirá sermões medíocres. A única maneira proveitosa de lê-la é com fome. Quando o pastor tem fome da Bíblia e mostra isso, o povo passa a ter fome da Bíblia. O rebanho não será melhor que o pastor. Não amará mais a Jesus que o pastor. Não terá mais interesse pela Bíblia que o pastor. Eis a postura: amar, respeitar e valorizar a Bíblia. Disse Al Martin: “o solo onde medra a pregação poderosa é a vida do pregador” 5.
(6) O pregador deve fugir da ideia de que deve ser original, espetaculoso, para ser bom pregador. De ver nas Escrituras o que nunca alguém viu em 2.000 anos de estudo da Palavra de Deus. O foco deve ser a Palavra e não o pregador. Quando o pregador aparece mais do que a Palavra é para se ficar alerta. E se algum de nós aparece muito, no púlpito, mais que a verdade que pregamos, confessemos o pecado de querer tomar o lugar do que é Divino. Devemos pregar o arroz com feijão, porque o arroz com feijão mantiveram a igreja em pé por séculos. No templo da PIB de Nova Odessa, em S. Paulo, está pintado o texto de 1Coríntios 1.23: Bet mes sludinam Kristu krusta sisto(Mas nós pregamos a Cristo crucificado). Que lembrança! E que saudades do tempo em que nossa marca maior era os versículos bíblicos pintados nas paredes dos templos, e não as caixas de som!
(7) Seriedade na exposição. Alguns pregadores têm o hábito de começar com uma piada para “quebrar o gelo”. Parece que alguns moram na Sibéria porque há muita piada. Humor é uma coisa. Pândega é outra. Conforme Al Martin: “Ninguém pode ser, ao mesmo tempo, um palhaço e um profeta (…). Isso não quer dizer que não devamos ser autenticamente humanos, e que a habilidade natural de rir envolva qualquer elemento de pecaminosidade, ou que fosse pecaminosa a alegria natural que se deriva de um riso que procede do fundo do coração. Entretanto, o esforço desnatural de certos pregadores para serem ‘contadores de piada’, entre a nossa gente, constitui uma tendência que precisa acabar” 6.
O pregador não deve usar a Bíblia para subsidiar seus conceitos pessoais ou dar suporte ao seu ministério. Um colega de seminário me disse certa vez: “Isaltino, preparei um sermão para arrebentar! Expus todos os problemas da igreja! Só preciso de um texto bíblico agora!”. Ele não tinha um sermão. Tinha uma lista de desaforos que queria dizer ao povo. Sobre esta atitude, eu diria: “Pregue com amor!”. Se repreender, faça com amor. Mesmo machucado, faça com amor. Lembre-se de 1Coríntios 16.14: “Façam tudo com amor”. Não se pode ter uma pregação bíblica com um coração iracundo ou ressentido. Já preguei com o fígado. Isso é muito ruim. Quando o fígado toma o lugar do coração, ou a gente muda a atitude ou muda de igreja.
(8) O sermão não pode ser um item a mais na ordem do culto. O pessoal de música se zanga quando se diz que a pregação é o momento mais importante do culto. “Isto quer dizer que o resto não valeu nada?”, é a pergunta feita. Não se deve por na boca alheia palavras que eles não disseram. Não é o único momento importante, mas é o mais importante do culto. Nos cânticos, falamos a Deus. Nas orações, falamos a Deus. Na pregação, Deus nos fala. Ouvir Deus é mais importante que falar a Deus. Ele nos conhece sem que haja uma palavra em nossa boca (Sl 139.4). Mas nós não o conhecemos tanto assim. E foi pela loucura da pregação (kerygma), e não do louvor que ele escolheu salvar o mundo (1Co 1.21). Permitam-me compartilhar uma perspectiva de ministério. Procuro fazer dos cultos o carro chefe da vida da igreja. Seu planejamento é motivo de oração e de entrosamento de todas as partes. Publico no boletim os temas e os textos das mensagens do domingo seguinte. Entrego a quem faz as ordens de culto os esboços dos sermões que serão pregador no domingo seguinte. Todas as leituras, todos os hinos e as mensagens musicais devem se relacionar com o assunto. Tudo caminha junto, na mesma direção, e assim a pregação se torna o clímax de um culto organizado. Tudo é importante, mas o momento climáxico, a pregação, se beneficiou das outras partes. A grande vantagem é que o culto passa a orbitar, em termos de conteúdo, ao redor da Bíblia. Não apenas a mensagem é bíblica, mas o culto é bíblico.
CONCLUSÃO
Minha conclusão é bem singela. Pregar a Bíblia é mais que técnica. É alma. Lembro uma citação de James Stewart: “A pregação não existe para a propagação de ideias, opiniões e ideais, mas para a proclamação dos poderosos atos de Deus” 7. Esses atos poderosos estão registrados nas Escrituras. Como Wright expõe em seu livro O Deus que age 8, a Bíblia não é apenas a palavra, mas é o livro dos atos de Deus. Deus falou e Deus agiu. Pregar é proclamar os atos de Deus na história e na vida das pessoas. Sem a Bíblia não temos o registro dos atos de Deus na história e seus atos na vida das pessoas ficam sem parâmetro. As Escrituras são o parâmetro para ver se o que acontece na vida das pessoas é de Deus ou não.
As maiores necessidades de um pregador são espiritualidade e estudo. Ele deve cuidar de sua vida, antes e acima de tudo. “Não fiquem me olhando assim por causa da minha cor, pois foi o sol que me queimou. Meus irmãos ficaram zangados comigo e me fizeram trabalhar nas plantações de uvas. Por isso, não tive tempo de cuidar de mim mesma” (Ct 1.6b). “Não tive tempo de cuidar de mim” é algo trágico a um pregador.
Ele também deve estudar. Deve comprar livros de bom nível. Não a sucata espiritual que se vende por aí, onde alguém teve uma experiência e quer que todo mundo a tenha. O púlpito deve ser analítico e isso demanda estudo e seriedade. Deve haver do pregador um estudo constante e rotineiro. Esta é mais sublime tarefa que uma pessoa pode receber: falar em nome de Deus. Isto deve infundir em nós um profundo senso de terror. Isto é sério! Façamos com zelo a nossa tarefa e busquemos ser sempre melhores. A mediocridade e a estagnação são incompatíveis com nossa missão como pregadores. Façamos um uso honesto e dignificante do púlpito. Que o nome do Salvador brilhe e não nós. O lema de todo pregador deve ser João 3.30: “Ele tem de ficar cada vez mais importante, e eu, menos importante”.
Termino com as palavras de Deus a Ezequiel: “Come este livro” (Ez 3.1).
1 Conforme consta do “Livro do mensageiro” da 91ª. Assembleia da Convenção Batista Brasileira, p. 231.
2 DREHER, Martin. Fundamentalismo. São Leopoldo: Sinodal, 2006, p. 30.
3 Conforme Darrel Bock, em Unidade na diversidade. São Paulo: Vida, 2004, p. 51.
4 Ver noticias.gospelmais.com.br/ler-a-biblia-toda.htm., em 7.8.12.