| Alderi Souza de Matos
A prática do dízimo é um tema controvertido nas igrejas evangélicas, tendo, de um lado, defensores apaixonados e, do outro, críticos ardorosos. Para alguns, é uma espécie de legalismo judaico preservado na igreja cristã. Para outros, trata-se de uma norma divina que tem valor permanente para o povo de Deus, na antiga e na nova dispensação. Os críticos do dízimo afirmam que sua obrigatoriedade é contrária ao espírito do evangelho, pois Cristo liberta as pessoas das imposições da lei. Os defensores alegam que essa posição é interesseira, porque permite às pessoas se eximirem da responsabilidade de sustentar generosamente a igreja e suas atividades. O grande desafio nessa área é encontrar o equilíbrio entre tais posições divergentes. O que está em jogo é uma questão mais ampla -- o conceito da mordomia cristã, do uso que os cristãos fazem de seus recursos e bens.
Os dados bíblicos O dízimo (do latim “decimu”) pode ser definido como a prática de dar a décima parte de todos os frutos e rendimentos para o sustento das instituições religiosas e dos seus ministros. Trata-se de um costume antigo e generalizado, sendo encontrado tanto no judaísmo como nas culturas vizinhas do Oriente Médio. Essa prática é claramente estabelecida no Antigo Testamento, sendo até mesmo anterior à lei de Moisés (Gn 14.20; 28.22). O dízimo era devido primariamente a Deus, como expressão de gratidão por suas bênçãos e consagração a ele. Mais tarde, tornou-se um preceito formal na vida religiosa dos hebreus (Lv 27.30-32), sendo destinado especificamente para o sustento dos levitas (Nm 18.21-24). Em Deuteronômio, está associado a uma refeição comunitária festiva e ao auxílio aos necessitados (12.17-19; 14.22-29; 26.12-14). Às vezes era dado liberalmente (2Cr 31.5-6; Ne 10.37-39; 12.44) e em outras ocasiões retido fraudulentamente (Ml 3.8-10).
Nos escritos do Novo Testamento, o dízimo é mencionado explicitamente apenas nos Evangelhos e na epístola aos Hebreus, sempre em relação aos judeus. Jesus aprovou a prática, mas a censurou quando se tornava uma expressão de frio legalismo (Mt 23.23; Lc 11.42; 18.12; ver Am 4.4). Em Hebreus, é mencionado em conexão com Melquisedeque, uma figura do sacerdócio de Cristo (7.1-10). As epístolas paulinas falam muito sobre ofertas para a comunidade, mas sua ênfase maior é sobre as contribuições voluntárias (2Co 9.6-7). O Novo Testamento não fornece muitas informações sobre o sustento do trabalho regular da igreja. Todavia, as informações disponíveis destacam atitudes como gratidão, fé, amor e generosidade como motivações centrais da mordomia cristã.
O dízimo na história No início da igreja, a informalidade e a simplicidade das estruturas não exigiam muitos recursos para sua manutenção. Não havia templos nem ministério em tempo integral (muitos líderes eram “fazedores de tendas”, como Paulo). A maior carência estava na área social ou beneficente. Daí a grande ênfase nas ofertas, principalmente em situações de particular necessidade (ver 1Co 16.1-4; 2Co 8.1–9.15). No entanto, o princípio de que a contribuição devia ser marcada pelo desprendimento e liberalidade se manteve, como se pode ver na “Didaquê”, um manual eclesiástico do 2º século: “Tome uma parte do seu dinheiro, da sua roupa e de todas as suas posses, segundo lhe parecer oportuno, e os dê conforme o preceito” (13.7). No final do mesmo século, Irineu de Lião se referiu aos cristãos como aqueles que “separam todas as suas posses para os propósitos do Senhor, entregando de modo alegre e espontâneo as porções não menos valiosas de sua propriedade” (“Contra as heresias” IV.18).
Com o passar do tempo e a crescente institucionalização da igreja, houve a necessidade de uma forma padronizada de contribuição. Com isso, recorreu-se ao precedente bíblico já conhecido e testado por muito tempo -- o dízimo. Ao longo dos séculos, ele se tornou obrigatório -- uma espécie de imposto eclesiástico -- e na época de Carlos Magno passou a integrar a lei civil. No final da Idade Média surgiram abusos quando os dízimos, em certos casos, se tornaram um instrumento para a compra de cargos eclesiásticos (simonia). Houve controvérsias quando as pessoas buscavam fugir ao pagamento dos dízimos enquanto outras tentavam se apropriar desses rendimentos para si mesmas. Os países que tinham igrejas estatais recolhiam os dízimos dos fiéis em troca do sustento da igreja e do pagamento dos salários dos ministros (côngrua). No Brasil colonial, em virtude do sistema conhecido como “padroado”, o dízimo se tornou o principal tributo arrecadado pelo estado português.
Validade atual A questão que se coloca é a seguinte -- o dízimo é valido hoje em dia para os cristãos? É uma forma legítima de contribuição cristã? São muitos os fatores a serem considerados na busca de uma resposta. Em primeiro lugar, é preciso atentar para o ensino bíblico global sobre o lugar que os bens devem ter na vida do crente. Deus é o senhor e proprietário supremo de todas as coisas. Os seres humanos são mordomos, ou seja, administradores dos recursos e dádivas de Deus. Aqueles que realmente o amam, são gratos por suas bênçãos e querem servi-lo, se sentirão movidos intimamente a contribuir para causas que engrandecem o seu nome. A segunda consideração é pragmática. A igreja é uma associação voluntária. Ela não tem outra fonte estável de sustento a não ser as contribuições dos seus membros. As ofertas ocasionais comprovadamente são insuficientes para atender a todas as necessidades financeiras da comunidade cristã. Torna-se necessário um método de contribuição que seja regular, generoso e proporcional aos recursos dos fiéis.
Outro argumento se baseia numa comparação entre Israel e a igreja. Os cristãos entendem que têm recebido bênçãos muito maiores que a antiga nação judaica. O que para esta estava na forma de promessas, para os cristãos são realidades concretas, presentes. A vinda do Messias, sua obra de redenção, seus ensinos e os de seus apóstolos (o Novo Testamento), a dádiva do Espírito Santo e a revelação mais plena da vida futura são exemplos desses grandes benefícios usufruídos plenamente na nova aliança. Daí decorre o seguinte raciocínio: se Deus prescreveu o dízimo para o antigo povo de Israel, seria de se esperar que ele requeresse menos dos cristãos, detentores de maiores dádivas? Portanto, muitos estudiosos concluem que o dízimo deve ser, não o teto da contribuição cristã, mas o piso, o mínimo, o ponto de partida.
Conclusão A questão do dízimo é tão difícil para muitos cristãos porque toca numa parte sensível da sua vida -- o bolso. Parece excessivo entregar um décimo dos rendimentos para Deus, para a causa de Cristo. Nem todos têm o desprendimento e a generosidade da pobre viúva elogiada por Jesus (Mc 12.41-44). Todavia, o dízimo pode ser uma bênção na experiência do cristão em dois sentidos. Primeiro, como um desafio para a sua vida espiritual. Dar o dízimo pressupõe uma relação de amor, gratidão e compromisso com Deus e com as pessoas que serão beneficiadas com essa contribuição. Em segundo lugar, é também um desafio para a melhor administração da vida financeira. Muitas pessoas têm dificuldade em contribuir para a igreja e suas causas porque são desorganizadas em suas finanças, gastam mais do que podem, não têm um senso de prioridades em seu orçamento. A prática do dízimo produz uma disciplina que beneficia outras áreas da vida. Para aqueles que querem trilhar esse caminho, a sugestão é que comecem a aumentar gradativamente a sua contribuição, até atingir o padrão do Antigo Testamento... e então ir além dele.
• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”. asdm@mackenzie.com.br |
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