Batistas - Vivemos uma crise de identidade?

Os batistas brasileiros vivem uma crise de identidade? Uma rápida leitura das respostas colhidas por uma pesquisa encomendada na última reunião do Conselho Geral da Convenção Batista Brasileira (CBB) dá indícios de que uma parte dos batistas brasileiros entende que a resposta a este questionamento é positiva.

Pensando nisto, OJB conversou com alguns pastores e líderes batistas que, além de atuarem de forma relevante em suas igrejas locais, têm a questão da identidade denominacional como um de seus focos de reflexão.

O primeiro deles é o pastor Irland Pereira de Azevedo, presidente emérito da CBB, que afirma que “vivemos hoje um momento de crise de identidade como batistas”. Na opinião dele isto acontece porque, “esquecidos de nossas origens, princípios e doutrinas básicas do ser batista, perdemos condições de dialogar construtivamente e dizer quem somos, donde viemos e para onde vamos, como povo e denominação”.

Para o pastor Irland, este fenômeno é causado pela “globalização da fé, pela perda de raízes característica da pós-modernidade, pelos descompromissos com a história, pela preocupação com o crescimento numérico da igreja a qualquer custo, pelo mimetismo que a mídia incentiva e, sobretudo, pela falta de exame sério das Escrituras Sagradas”.

Opinião semelhante tem Zaqueu Moreira de Oliveira, que é pastor batista há 50 anos, professor e ex-reitor do Seminário Teológico Batista Equatorial (STBE) e do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil (STBNB).

“Certamente a preocupação em viver o momento atual nesta emaranhada pós-modernidade tem superado o interesse pelo passado, o que ele significa e pelas nossas origens. É impressionante como a nossa história é ignorada mesmo por pastores e líderes. Infelizmente, quem se interessa pelo passado é visto como antiquado. Outro grande problema é que perdemos a unidade que existia através da literatura produzida pela Junta de Educação Religiosa e Publicações (Juerp). Hoje, igrejas usam revistas e livros que não apresentam qualquer firmeza doutrinária. Com isso o ensino na Escola Bíblica Dominical (EBD) se tornou muito vazio, facilitando a penetração de ideias que negam os nossos princípios. Por outro lado, a avidez por novidade domina os nossos jovens. É verdade que as mudanças são necessárias, principalmente em estratégias e metodologias. Entretanto, as doutrinas, assim como os princípios, são imutáveis”, declara o pastor Zaqueu.

Já na opinião do pastor da Igreja Batista Barão da Taquara (RJ), Carlos César Peff Novaes, é possível afirmar “que os batistas, e todas as demais denominações chamadas históricas, estão passando por uma crise de identidade”.

Novaes diz que: “Uma grande parte dos batistas sequer imagina que procedemos de um grupo que defendeu princípios como a liberdade religiosa, a separação entre a Igreja e o Estado, a competência do indivíduo, a eclesiologia congregacionalista e a ordem social democrática. Não conhece a nossa história e, tampouco, os nossos princípios”.

Para ele a gênese deste quadro está em que, “primeiro, não foram ensinados, pois muitos dos seus próprios líderes e pastores não os conhecem. Segundo, não se interessam em ensinar, nem em aprender, porque há uma enorme frustração hoje em relação à máquina denominacional. As igrejas vão até relativamente bem. A obra missionária talvez seja hoje a única coisa que ainda desperta a paixão dos batistas. Porém, a instituição denominacional em si está enfraquecida. Sofreu perdas inúmeras, em quantidade e qualidade. Isso gerou uma frustração sem limites. Perdemos o interesse pela nossa identidade”.

No entanto, há aqueles que não compartilham da opinião de que os batistas brasileiros estejam com falta de identidade. Na opinião do pastor da Igreja Batista Itacuruçá (RJ), Israel Belo de Azevedo, “não há falta de identidade, a crise é outra”.

“Não há veículos de comunicação que ajudem a formar uma uma coesão por adesão. Não há líderes que, quando falam, sejam ouvidos como vozes batistas. Há vozes demais, que não são ouvidas. Quem é o 'senhor batista', que vejamos e identifiquemos como o batista típico? Não existe.

O problema é que este modelo (igrejas locais fortes e associações/convenções fracas), típica de nossa identidade, aumenta a pulverização e a sensação de ausência de identidade. A autonomia das igrejas é a sua maior virtude e o seu maior defeito. O defeito só seria minimizado com uma rede forte de comunicação. Sem uma rede forte de comunicação e de educação a virtude (autonomia) vira defeito”, declara.


Consequencias para a igreja local

Segundo o pastor Isaltino Gomes Coelho Filho, que é colaborador de OJB, uma consequência desta pretensa falta de identidade é que “as igrejas se nivelarem por baixo a um grande número de igrejas sem conteúdo, sem doutrina, sem rumo e sem credo algum”.

Na opinião dele, “para o indivíduo, é pensar que está crendo no Evangelho, mas na realidade está crendo num arremedo de Evangelho”. “Boa parte dos membros de nossas igrejas desconhece o passado batista, nossa história, nossos princípios e o teor de nossa pregação ao longo dos tempos. Pensam que vida cristã, como batista, é ir a um lugar, cantar, ouvir algo bom e sair. Entretanto, não encarnam na sua vida os grandes princípios batistas. Nem a fé histórica dos cristãos”, declara.

Já para o pastor Zaqueu a principal consequencia do que ele considera falta de identidade é outra: “A falta de identidade resulta em tudo o que está acontecendo hoje nas igrejas e na denominação. Anos atrás se contava nos dedos o número de pessoas que deixavam a nossa denominação por outra. Hoje, isto acontece em quase todas as famílias, mesmo naquelas cujos chefes ou patriarcas foram, ou são, intransigentes batistas. Vejo isso mesmo entre meus familiares. Nossos queridos (ovelhas e parentes) deslizam para outros grupos que lhes parecem atender seus anseios, independentemente de ferir algo do que a Palavra de Deus nos ensina. Igrejas, mesmo continuando vinculadas à denominação, denotam desvios doutrinários através da mensagem que anunciam, dos cânticos abarrotados de heresias e das práticas que se encontram desvinculadas dos nossos princípios. Com tudo isso a denominação sofre, adoece e tende a perder a própria razão de ser”.

Falta de condições para se posicionar de forma relevante diante das questões da sociedade atual, esta é principal consequência de uma denominação sem identidade na opinião do pastor Novaes: “Em primeiro lugar, quando não sabemos qual a nossa identidade é porque não conhecemos nosso nome, nossa história, nossa fé, nossos princípios. E não saber isso significa não saber pelo que lutar, para onde direcionarmos nossos passos, que alvos queremos atingir. José Saramago, escritor português, num dos seus romances tem uma epígrafe que diz: 'sabes o nome que te deram, mas não sabes o nome que tens'. Hoje nos chamam de batistas. Porém, sabemos de fato quem somos? Para onde queremos ir? O que defendemos? Quais são os aspectos específicos da nossa pregação? Que diferenciais temos? Para a igreja, para a denominação, para o indivíduo batista o resultado disso é um só: Estagnação, falta de sentido, vazio. Que lugar ocupamos na sociedade hoje? Quem se interessa em saber o que pensamos? E caso se interesse pelo que pensamos, o que seria dito de relevante para a sociedade moderna?”.

No mesmo cainho segue o pastor Irland, que aponta algumas consequências como: “Incapacidade de um diálogo proveitoso e rico com outros grupos denominacionais e com a cristandade em geral, a indefinição de estrutura eclesiástica e governo da igreja, o excesso de modelos de crescimento ou operação da igreja levando muitos pastores a fazer de suas igrejas campo de experimentação e 'cobaias' de novos experimentos eclesiológicos”.

Assim como seus colegas, ele também pensa que “muitos pastores não sabem o que são, nem donde vieram, nem para onde vão, mas estão perdidos em meio à confusão teológica, metodológica e ética de nossos dias”.

A consequência disto tudo, para o pastor Irland, é que as igrejas destes pastores se assemelha a um avião sem direção: “À certa altura do voo o comandante afirma que a aeronave está a 10 mil metros de altura, o tempo é bom, a velocidade é de 90 km/h, a temperatura externa é de 20 graus negativos e a temperatura no interior da aeronave é de 17 graus. No entanto, o avião perdeu o rumo, pois uma asa do avião se quebrou e o aparelho está prestes a cair, e acaba caindo. Há conforto interno, grande velocidade, muita altura, mas falta de direção”.


Como mudar esta situação?

Uma mudança, na opinião de todos, não é fácil. Entretanto, não é impossível. Na opinião do pastor Israel Belo, para quem não há uma crise de identidade, mas sim uma sensação de falta de identidade, para que haja uma mudança no atual contexto “é necessário que a CBB seja forte”. Segundo ele, esta “força deve se traduzir em posse de recursos para fazer o que precisa fazer (sobretudo nas áreas de comunicação, educação e formação ministerial). Sua força precisa de agilidade no processo decisório”.

Já para o pastor Isaltino o caminho passa pela recuperação da história e de princípios. “É necessário ensinar nossa história e princípios. Enfatizá-los em assembleias, ensiná-los em nossos seminários, divulgá-los em nossas publicações. Fazer deles a espinha dorsal de nossa vivência como denominação. Fazer uma chamada à união batista nacional. Há muito voo solo e muita carreira individual, em que cada um parece estar escrevendo sua história pessoal e não a de seu grupo. O individualismo tem sido enorme, e sempre fomos um povo que, em paralelo à autonomia da igreja, ensinamos a cooperação. Esta precisa ser resgatada e vista não apenas em termos de contribuição financeira. Precisamos devolver a denominação à sua proprietária, a igreja local, e pedir à igreja que cuide dela”.

Quem também vê o retorno às origens como um caminho necessário para lidar com esta questão é o pastor Irland, que elenca algumas medidas práticas: “Primeiro, é necessário cuidar do estudo das origens, da história, dos princípios e dos elementos sinaléticos da identidade batista dentro do contexto da realidade da Igreja de Jesus Cristo no mundo. Em segundo lugar, deve-se submeter toda nova doutrina e todos os modelos de igreja propostos nos dias atuais ao crivo das Escrituras, adotando, se for o caso, aqueles que tenham sólida básica bíblica e se ajustam à realidade social, econômica e cultural de nossa comunidade. O terceiro ponto está na pregação, ensino, evangelização e missões. É imprescindível contextualizar linguagem, métodos e forma de nossa mensagem para o mundo de nossos dias sem comprometer a essência de nossas doutrinas e princípios. Além disso, deve-se distinguir, em nossa pregação e práxis pastoral e eclesiástica o necessário e o contingente, a doutrina e os costumes, o princípio e o culturalmente condicionado, o substantivo e o adjetivo de nossa fé. Também é importante ensinar e pregar expositivamente a Palavra de Deus, e estudar sistematicamente e com a igreja a Declaração Doutrinária da CBB e seus fundamentos bíblicos. Outra iniciativa a ser tomada é compreender a importância de denominações e grupos evangélicos como famílias da fé, mas também o que nos é peculiar e precioso como família batista. Por último, deve-se desenvolver um diálogo com outras lideranças do povo de Deus, sempre proveitoso para a compreensão uns dos outros e aprendizado de métodos que nos ajudem a realizar com mais eficácia a obra de Deus”.

O pastor Zaqueu, por outro lado, destaca a importância do ensino em um processo de recuperação da identidade batista: “É muito difícil dizer o que podemos fazer. Mas entendo pela Bíblia que cada igreja tem a responsabilidade não apenas de proclamar o Evangelho, mas de ensinar (Mateus 28.19-20). O ensino não é responsabilidade somente dos seminários, mas precisa começar nas igrejas. Quem tem um chamado especial é enviado para um seminário, mas com uma base bíblica e doutrinária concedida na igreja local. Caso isso fosse levado mais a sério, haveria menos problemas com alunos que chegam nas instituições teológicas completamente sem conteúdo bíblico. Certa ocasião, reclamei de um pastor por ter recomendado para o seminário um jovem que tinha tudo aquilo que não se pode admitir em um vocacionado para o Ministério da Palavra. A resposta foi que ele e os familiares do rapaz esperavam que ele se 'ajeitasse' no seminário. Só que seminário não é reformatório. Se na igreja local ele não encontrou ambiente ou ensino para mudar seu comportamento, não é o seminário que vai dar 'jeito' nele. O jovem que sai do seminário sem conteúdo bíblico e doutrinário, pode ser o maior conhecedor das línguas originais, da Filosofia ou da Teologia, mas terminará por conduzir a sua igreja para outros caminhos”.


A importância da formação de líderes

Em um ponto os entrevistados foram unânimes, uma das iniciativas fundamentais para lidar com esta situação é a formação de líderes verdadeiramente comprometidos com a igreja e com a denominação. Para isto um trabalho sério na área da educação teológica é fundamental, como afirma o pastor Novaes: “Devemos investir no estudo teológico. Investir no preparo teológico dos líderes. Formar teólogos batistas e professores batistas de Teologia. Escritores batistas de Teologia. As igrejas precisam ajudar nesse investimento. Afinal, líderes e pastores bem formados teologicamente vão beneficiar as próprias igrejas. Especialmente hoje em dia, quando os pregadores evangélicos que mais aparecem na TV fazem afirmações que não resistem à exegese mais superficial. Há um analfabetismo bíblico e religioso no mundo evangélico hoje que mais parece um retorno à Idade Média. É assustador. E há pastores e líderes batistas embarcando em barcos furadíssimos em termos de Teologia e Exegese Bíblica. Falta-lhes, com certeza, formação teológica. Fé e intelecto devem andar de mãos dadas. Fé sem intelecto é fanatismo. Intelecto sem fé é racionalismo. Não se opõem. Se completam”.

Mesma opinião tem o pastor Zaqueu, que afirma que “não deve haver preocupação ou medo da denominação ou das instituições quanto ao ensino de Teologia. Os estudantes devem ser estimulados a exercitarem a reflexão teológica, pois isso feito com maturidade não conduz a desvios doutrinários”.

Segundo ele, “o batista precisa saber de onde veio e para onde vai. Quem é da família batista deve ter convicção do que é e do que faz, sendo saudável para o cumprimento de sua missão neste mundo. O que o apóstolo Paulo falou sobre o bispo podemos estender a todos os batistas, na concepção de que todo cristão é vocacionado, devendo por isso ser 'apegado à Palavra Fiel, que é segundo a doutrina' (Tito 1.9a). Firmados na doutrina bíblica, podemos crescer na nossa convicção, conhecendo e vivendo os princípios que esposamos, a ponto de dizer: 'Pela graça de Deus sou o que sou' (1 Coríntios 15.10a)”.

Na opinião do pastor Irland, “o papel dos seminários, faculdades de Teologia e outras escolas de formação de liderança para as igrejas é de enorme relevância. Nascidas por decisão das igrejas e existentes para a elas servir, na formação de líderes, mestres, doutrinadores de nosso povo e profetas para o Brasil e o mundo de nossos dias, essas escolas hão de ter e assumir um compromisso denominacional, embora crítico. A boa formação de pastores e mestres requer docentes conhecedores profundos da história, dos princípios e dos valores batistas que têm sido defendidos ao longo dos séculos. Um povo que não tem história não tem futuro. Quem não sabe de onde veio, dificilmente sabe para onde vai, e para quem não sabe para onde navega qualquer vento serve”.


FÁBIO AGUIAR LISBOA

Editor de OJB

Fonte: http://www.ojornalbatista.com.br/index.phpoption=com_content&task=view&id=1605&Itemid=32