Igreja -- o futuro está no resgate do passado

Robinson Cavalcanti

No cenário religioso mundial, vemos que as antigas religiões -- bramanismo, budismo, etc. -- estão vivas e ativas, com seu antigo conteúdo. O Islã vem demonstrando agressiva vitalidade e expansionismo, ultrapassando, em números, a Igreja de Roma. Esta, sob João Paulo II e Bento XVI, parece estar cada vez menos interessada nas multidões nominais (embora não queira perdê-las), do que em um núcleo enxuto, sintonizado e obediente aos seus dogmas e magistério. As Igrejas do Oriente, depois de séculos de opressão pelo Estado -- cesaropapismo, otomanos e comunistas --, vai despertando para a liberdade sempre marcada pela estabilidade dos seus patriarcas e metropolitas, embasados nos Pais da Igreja e nas decisões dos concílios da Igreja indivisa, sem concessões às “ondas” seculares. Essas manifestações religiosas prezam por suas raízes e identidades, e delas não se envergonham. Enquanto o espaço euro-ocidental, ex-cristão, vai recebendo levas de imigrantes não-cristãos para substituir a mão-de-obra em sua egoística taxa de natalidade de quase zero, seus governos e suas elites intelectuais vão, com grande rapidez, transformando o Estado laico em Estado secularista. Neste apenas os ateus, agnósticos e materialistas seriam cidadãos de primeira classe, e a religião é desqualificada, empurrada para fora da esfera pública, para a irrelevância dos espaços fechados dos templos e dos lares, ou das subjetividades individuais. O seu alvo principal é o cristianismo (negação da história e da contribuição cultural), se iniciando um novo ciclo de perseguição. Esse secularismo é fruto não só do Iluminismo, mas também do liberalismo teológico, com uma religião que nega a si mesma. Lamentavelmente, o secularismo-liberalismo se consolidou nos espaços protestantes. Não somente a Reforma foi abandonada, mas também o próprio cristianismo, como entendido desde a sua origem. Uma coisa é atualizar linguagem, métodos, ênfases, estratégias; outra é substituir conceitos e preceitos de uma religião que se pretende de revelação. Doutrinas e padrões de comportamento são relativizados, e esses aloprados ainda esperam que uma pessoa humana normal adira a essa mixórdia!

No Brasil, a declinante, mas ainda hegemônica Igreja de Roma, com sua diversidade, se move entre conter a debandada das massas e estabelecer núcleos conscientes. As igrejas orientais ainda não saíram dos guetos étnicos. O secularismo avança com os “sem-religião”, ou com os que querem vínculos sem compromisso. O protestantismo não cresce, incha, com as igrejas históricas desorientadas, sem perceber o valor do seu depósito. O pentecostalismo vai se fragmentando em uma miríade de “ministérios”: empresas centradas nos líderes. Os analistas que, lucidamente, desqualificam o caráter protestante e evangélico das seitas pseudo(neo)pentecostais são acusados de “elitistas”. Ex-personalidades evangélicas abandonam, em autoflagelação ou sarcasmo, o seu passado, sucumbindo ao humanismo, ao secularismo, ao liberalismo ou a seus egos narcísicos, deixando uma geração sem heróis. Nosso protestantismo histórico (congregacionalista ou presbiteriano) nasceu sob perseguição e tensão polêmica, confundindo catolicismo (herança histórica) com romanismo. Sua identidade foi construída mais pelo antirromanismo do que pela afirmação das confissões de fé e da teologia reformada, com comportamento mais de seita do que de igreja, negando a ação do Espírito Santo nos 1.500 anos que precederam a Reforma, desconhecendo os 1.200 anos da cristandade oriental (a mais antiga). A insistência nessa “apostasia geral da Igreja” e na mitificação da Igreja de Jerusalém (que adotaria os procedimentos parlamentares do século 16) não foi uma resposta adequada ao mito monocêntrico da Igreja de Roma como “a” Igreja original (da qual todas teriam saído), desconhecendo o caráter policêntrico das sés deixadas nos primeiros séculos pelos apóstolos e Pais apostólicos, que estabeleceram o cânon bíblico, as doutrinas centrais nos credos, os sacramentos e o governo episcopal (com as ordens de bispos, presbíteros e diáconos), deliberando em concílio, do qual Roma é que se afastou com sua pretensão. O protestantismo iniciou a sua decadência quando confundiu o livre exame com a livre interpretação. O protestantismo brasileiro aprofundou a crise, pela ignorância ou rejeição da história da Igreja indivisa. Identificou-se, erroneamente, episcopado com romanismo, desconhecendo-se tanto a teologia, quanto a prática, que essa foi a forma consensualmente estabelecida em toda a cristandade já um século após a ressurreição de Cristo, e que a primeira Reforma -- representada hoje pelos signatários, anglicanos e luteranos, do Acordo de Porvoo -- manteve o episcopado histórico, compartilhando-o com suas Igrejas filhas através do mundo. Sem um retorno humilde, sério e sincero, ao passado, não sairemos da crise do presente, nem construiremos o futuro desejado pelo Senhor da Igreja, em verdade e unidade.


Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política -- teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo -- desafios a uma fé engajada.
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